CONFERÊNCIA SOBRE JOSÉ MARMELO E SILVA

CONFERÊNCIA SOBRE JOSÉ MARMELO E SILVA, por Ramiro Teixeira

Já uma vez narrei o meu encontro com José Marmelo e Silva e vou repeti-lo. Lia, então, mais ou menos a meio da década de 50, um dos volumes da colecção Os Melhores Contos Portugueses (Porto, Portugália, 1943), onde vinha publicada a pequena novela Depoimento. O impacto que a sua leitura me provocou foi de tal ordem que, de imediato, me lancei pelas livrarias em busca das obras do autor. Em vão!
E isto numa época em que não havia periódico ou revista que, pelo menos uma vez por semana, não consagrasse uma ou mais páginas às artes em geral e à literatura em particular!
E daqui uma primeira asserção: a de ter cabido a José Marmelo e Silva a fatalidade de publicar a sua primeira grande obra, Sedução (1937/8), em período identificado com a problemática nascente do neo-realismo, o qual, rapidamente, passaria não só a decretar a imposição de toda a literatura se vincular às teses sociais que defendia, como, não menos importante, passaria a controlar ou a formatar, de algum modo, toda a actividade crítica, exceptuando, obviamente, a outra que então os homens da Presença superiormente exerciam.
Para estes, os da Presença, é óbvio que a publicação de Sedução não lhes foi indiferente, razão pela qual o seu autor foi convidado, por Régio, para colaborar na revista, sendo nas suas páginas que a pequena novela, Depoimento, conhece a sua primeira edição (1939).
Para os outros, é igualmente óbvio que os reparos que fizeram a Sedução, se exacerbaram ainda mais com a publicação de Depoimento, para mais na Presença, tendo em conta que, já então, Régio era encarado pelos neo-realistas como uma espécie de inimigo público nº I, enquanto supra-sacerdote do romance burguês, do eu intimista e egoísta, desligado das realidades do mundo, etc.
Por tudo isto, desde logo, Marmelo e Silva passou a ser considerado, pelos novos fazedores de opinião, como um escritor mais da clique dos psicólogos de almas, a tentar a ressurreição do então chamado romance burguês que se pretendia acabado!
Que tais fazedores de êxitos e de fracassos desconhecessem o outro livrinho de estreia de José Marmelo e Silva, O Homem que Abjurou a Sociedade (1932), de conteúdo propenso, ou afim, à conflitualidade das classes sociais – de um lado o mundo burguês e eclesiástico, e do outro o dos humilde – até não me admira, pois não só a edição foi reduzidíssima, constituindo hoje uma autêntica raridade, como foi repudiado pelo autor.
E bem, diga-se de passagem. Na verdade, este título, que reúne meia dúzia de contos, pouco tem que o recomende, dadas as fragilidades estilísticas e as tendências maniqueístas com que são contempladas as situações e as personagens, embora, na bibliografia do autor, não deixe de ser importante pela premonição que fornece sobre as áreas, temas e tensões existenciais, que virá a desenvolver de seguida, nomeadamente a opressão do meio sobre a singularidade do ser em formação /e a incapacidade deste em almejar o sonho que o alimenta, tudo a coberto de não menos singulares psiquismos e de uma forte sexualidade emergente. 
Chegado aqui, abro um parêntesis para comentar a introdução que Arnaldo Saraiva elaborou para este título, não só na mais valia que descobriu no que respeita à criatividade linguística, frásica e estilística só comparáveis às do brasileiro Guimarães Rosa (p.16), como, em jeito de conclusão, admitir um e outro como discípulos encobertos de Aquilino Ribeiro: Claro que Guimarães Rosa foi marcado – embora tivesse relutância em o declarar – pelo mesmo mestre que marcou Marmelo e Silva, que também o não nomeou: Aquilino Ribeiro (p.17).
A hipótese é sedutora, academicamente não despicienda, e até nos satisfaz o ego pátrio, considerando que passamos a cobrar a Guimarães Rosa o ascendente de Aquilino. Quero crer, todavia, ser mais realista debruçarmo-nos sobre o arcaísmo linguístico da época, isto é, o modo natural do emprego de formas arcaicas de expressão e escrita, como coisa decorrente dos hábitos e das causas da interioridade, enfim, do atraso cultural das populações, fosse nos sertões nordestinos do Brasil, ou nas aldeias perdidas no interior de Portugal, como era o caso de Paul, onde nasceu José Marmelo e Silva.
E por isso relembro que o Homem que Abjurou a Sociedade – Crónicas do Amor e do Tempo (1932), possuía como subtítulo, Mortecor do Painel Beirense!
Saberá o leitor, porventura, o que significa a palavra mortecor? Eu lhe digo: significa cor ténue em pintura; esbatimento; primeiras cores aplicadas num projecto de pintura – o que nos remete, desde logo, para o sentido ou para o juízo crítico que o próprio autor manifestava sobre a sua estreia literária!
Independentemente, porém, deste aspecto, o que pretendo salientar é que, muitas das expressões fixadas por José Marmelo e Silva neste título, e para as quais Arnaldo Saraiva chama a atenção, eram expressões correntes na época, variáveis, porventura, segundo as regiões e os estamentos sociais de quem as proferia, as quais, passados 70 anos ou mais, caíram em desuso, configurando-se, agora, muitas delas como tonalidades expressivas de vanguarda.
Processo semelhante, aliás, ocorre com a escrita de Abel Salazar, nomeadamente em Recordações do Minho Arcaico, (1939), reeditado em 2002, c/ prefácio de minha autoria, e que é um verdadeiro repositório de expressões frásicas da época, hoje surpreendentemente bizarras e sedutoras.
Passando ao título seguinte do escritor, Sedução (1938), começo por recordar o testemunho do autor a propósito desta edição. Diz ele:

Trouxe de Paul o poeta Augusto Abranches, subtraindo-o a uma frustração desesperadora, e com o dinheiro que pedi ajudei-o a montar a modestíssima “Portugália” que ele transformou surpreendentemente numa forja de sonhos (…) Nesse mesmo Natal de 37, vim de Coimbra para Lisboa. Por lá ficou a camaradagem dos que ficaram… E não por longo tempo: quebraram-na, quero crê-lo, com o abandono a que foi votado o Augusto Abranches, poucos anos depois, excluindo-o do Novo Cancioneiro (…) foram os traficantes da cultura e a propaganda-satélite (heterogénea) quem jugulou essa espontaneidade original (…) Enquistaram o movimento, esterilizaram-no – com cintos de castidade, com sujeição a modelos insexuados, com cães de guarda, com altifalantes, com máquinas de somar e de subtrair… (p.752)

Observação primeira: a não-aceitação da ortodoxia proclamada pelo autor começa aqui. Donde, ao contrário do que muitos julgam, é contra os seus primeiros camaradas de letras, dos cafés e tertúlias de Coimbra, que o pretendiam ficcionista do social, que ele invectiva e denuncia, considerando-se, a par de Augusto Abranches, ostracizado.
Observação segunda: este trouxe de Paul o poeta Augusto Abranches tem que se lhe diga.
Paul é uma freguesia do concelho da Covilhã, na qual nasceu não só José Marmelo e Silva, a 7 de Maio de 1911, mas também (António) Augusto (dos Santos) Abranches, a 4 de Março de 1912. Como facilmente se depreende, ambos caminharam a par nos estudos, localizando-se em Coimbra em 1937. 
Com muito ou pouco dinheiro emprestado por José Marmelo e Silva, para o caso não importa, criou Augusto Abranches a editora Portugália (de Coimbra), a qual se estreou no plano editorial justamente com a publicação de Sedução.
Personalidade deveras invulgar para o tempo, Augusto Abranches tinha tanto de super activo quanto de desordenado: foi poeta, tendo publicado Poemas de Hoje (1942); Tufão (1943); e também teatrólogo, As Várias Faces (1943); além de ensaísta, se para tal considerarmos o texto Contorno de Eça (1946), publicado em Moçambique.
A sua actividade, contudo, não se ficou por aqui, pois igualmente se dedicou ao desenho e à pintura, sendo de sua autoria não só a singular e original capa da brochura de Sedução, como igualmente a caricatura do autor que a publicação insere.
Dele pouco mais se sabe, exceptuando o registo de ter fundado e dirigido um suplemento literário, Sulco, de seu nome, em Moçambique, para onde imigrou em 1945, no qual deu a conhecer, de forma pioneira, Rui Knopfli, Craveirinha, Alberto de Lacerda e outros. Morreu em São Paulo, por coincidência, a 7 de Maio de 1963, praticamente ignorado e na maior miséria!
Retornando, entretanto, à Sedução, temos, antes de mais, as profusas alterações que o autor introduziu nas diversas edições do título, as quais ocorreram em 1937, 1948, 1960, 1972 e 1989, nem sempre, a meu ver, bem sucedidas em relação ao original, mas que para o caso pouca importância reflectem, dado que, no fundamental, a obra não foi alterada, salvo num pormenor que adiante darei registo.
Arnaldo Saraiva, a propósito deste título, chama particularmente a atenção do leitor para o lado frustrante que enfatiza as personagens, motivo pelo qual, em sua opinião, teria sido mais próprio denominar a novela de Frustração ao invés de Sedução. E justifica:

“Se fosse a história duma sedução, só poderia sê-lo pelo lado de Noémia; ora a sedução de Noémia representa já uma vingança e uma defesa contra a sua frustração, por um lado; e, por outro, Noémia não é o único personagem principal. Personagem principal é-o até com mais razão o seu irmão Eduardo, que não se mostra seduzido nem por ela, nem por outra mulher (que, quando muito, tenta seduzir), nem pelo que quer que seja, antes se mostra frustrado, a cada passo (p.62)  – sendo, pois, em redor deste tema, frustração, que Arnaldo Saraiva fundamenta toda a estrutura da novela.

A questão de saber qual destes títulos seria mais adequado, me parece coisa de somenos, pelo que não me custa aceitar um ou outro, até porque, na realidade, Eduardo, o narrador, sem margem para dúvidas, é um frustrado. Uma coisa, porém, é a frustração de Eduardo e outra, a meu ver inexistente, será a frustração de Noémia.
Agora, o que eu acho desinteressante é a visão persistente e consagrada, que se tem dado a esta história, até ao ponto de vir a constituir-se num paradigma e que eu, de forma alguma, subscrevo.
A ver: Sedução! A ambiguidade do termo possui conotações diversas, que vão desde a dependência ao sentimento amoroso, enamoramento, até ao calculismo que visa sobretudo o desfrute sexual. Quero dizer, a palavra sedução tanto identifica o artifício serventuário do amor, quanto o disfarce conducente ao usufruto da imensa variedade de emoções e paixões ligadas ao sexo.
Centro dominante das preocupações humanas, quer se encare numa ou noutra perspectiva, creio não haver tema na literatura mais vulgar e complexo do que este: vulgar, porque é a sedução amorosa que está na base de tudo quanto se move, tanto no âmbito da vida humana como no quadro da própria existência do universo; complexo, porque o amor e tudo quanto o envolve mais não visa do que o acto de domínio ou de sujeição sobre alguém.
Precisamente, de domínio, e não tanto de frustração, trata soberanamente esta novela, a par, por exemplo de Depoimento, posto, até aos dias de hoje, ninguém, com credenciais ou não, de tal se tenha apercebido.
Vejamos: logo nas primeiras páginas, somos confrontados com a raiz ou a origem da mesma; o antagonismo entre Eduardo e Noémia, dois irmãos remetidos para uma ruralidade decretada por uma despromoção social e histórica – o pai morreu-lhes louco, depois de desbaratar somas enormes na política, em favor da nobreza.
Mas enquanto Eduardo, mais novo dez anos, fica confinado à função de caixeiro numa lojeca adquirida com o que se salvou da herança, prisioneiro do horizonte de aldeia que desfruta em companhia da mãe, Noémia forma-se em direito, conquistando prestígio e autoridade, passando a constituir o amparo económico da família.
E eis que, numas férias, Noémia as vem passar à aldeia, com uma amiga, Marta. Eduardo, que é dominado por uma imaginação febricitante, julga que a companheira da irmã lhe é destinada como noiva, fantasia que igualmente se instala no espírito de sua mãe.
Apresta-se, então, em poses cinematográficas, ao papel que julga lhe estar destinado, o que não é difícil, pois se julga um conquistador nato, sempre disponível para uma aventura amorosa.
Um dia, aproveitando a breve ausência da irmã, que vai visitar uma condiscípula, Eduardo, a sós, declara-se a Marta. Esta aceita-o, mas, repare-se, no preciso momento em que Eduardo se declara e é correspondido, descobre-lhe, inopinadamente, uma anomalia na até então considerada irradiante beleza: um canino acavalado!
Pormenor bizarro este, que não serve somente para salientar a fixação do imaginário no real, conduzindo o leitor para uma singular visualização da personagem, como, paralelamente, se destina a salientar, através dum subtil pormenor, o complexo psiquismo do ser que de tal se dá conta, e que funciona como uma espécie de reserva, de mais valia disponível, para ser utilizada em caso de insucesso. Ou seja; no caso da aventura não sair a contento de Eduardo, digamos que este tem já em carteira um pormenor capaz de justificar o desaire, dando-o por sua conta.
Partindo da subalternização em que se situa, Eduardo, aparentemente, ainda que já confrontado com os sinais reveladores sobre a verdadeira índole da irmã, não lhes atribui, contudo, outro significado que não o decorrente do seu feitio despótico e masculinizado, motivo pelo qual a descreve como uma figura mirrada, abstinente, horrivelmente feia. Tem as tíbias tortas, descarnadas...E concluiu: Custa-me, enfim, estar a descrevê-la e, então, digo: é uma carcaça a andar. É a morte em pé. (p.80).
A denúncia do real, que ele não ousa ainda formular, vem-lhe do exterior, de um tal Carneiro, que se atreveu a dirigir-se à irmã, em requerimento de um favor, uma cunha, e que esta expulsa de casa por o conhecer como difamador da sua pessoa.
Perseguindo-o e travando-se de razões com ele, Eduardo é confrontado com a injúria:

Em Coimbra (em anteriores edições em Braga) tem quantas queira, ouviste agora? Até as leva para o Porto, uma por cada vez. Ainda te há-de roubar a Celeste, a Júlia, essas de quem tens a mania de te gabar. Lembra-te que to digo eu... Mas tu não abres os olhos, não queres, andas cego, és um pedaço de asno. Porque estais vós aqui, tu e a tua mãe, vivendo uma vida estúpida? Porque vos não leva ela para Coimbra e te não dá a ti uma posição decente? (p.127).

Depois, de arrebatamento em arrebatamento, Eduardo acaba por ser confrontado com o cenário lésbico que assinala o festejo do aniversário da irmã:

Desvairado, perdido, vi imediatamente o inacreditável: elevada num tronozinho de rainha, Noémia, lasciva e embriagada, aspirava o fumo azulino dum cigarro. As eleitas rojavam-se-lhe aos pés, seminuas. Esta, enrolada até à sua ilharga; aquela, até à cinta delgada; as restantes, estendidas pelo soalho, jaziam de cabeças estateladas. E todas gemiam carícias, oferecendo a boca à sua taça e os peitos nus às suas mãos...(p.157)

Perante um tal espectáculo, Eduardo, por três vezes, rugindo violento, as invectiva: “Bêbedas!”, insulto a que Noémia responde de forma não menos masculina e superior: “Abaixo os homens!” (p.158).
O epílogo, que aliás estabelece a circularidade da novela, não passa de uma pseudo explicação moral do autor (agora na pele de Eduardo) sobre as causas da desordem, que, entretanto, conduzem Noémia ao delírio, possuída por grave enfermidade.
Trata-se de um texto perfeitamente desnecessário, na medida em que procura dar uma explicação psíquica ou fisiológica, de efeito moralizador, na tentativa de reconverter os acontecimentos e a imagem de Noémia, dando-a como vítima duma sociedade que lhe recusou a sua pungente humanidade de mulher, até ao ponto de a levar a confundir, aos trinta anos, o pairar de um morcego à sua volta com o respirar dum homem, por quem, no fundo, ansiaria a sua específica natureza feminina... (p. 161).
Este acrescento foi, desde logo, duramente criticado, tanto por Gaspar Simões, quanto por Adolfo Casais Monteiro e Irene Lisboa, afinal, praticamente, os únicos que se deram ao trabalho de falar do autor, motivo pelo qual Marmelo e Silva veio a alterar significativamente o dito epílogo nas edições seguintes.
Devo dizer que a minha interpretação sobre este episódio foi sempre a de que este texto não se justifica, não só porque contraria a estrutura da novela, mas também porque passa, ou se confunde, por uma espécie de cedência do autor em relação ao modo como a mesma foi apreciada. E daqui que, quando muito, o aceite apenas na versão última que o autor lhe atribuiu.
Seja, porém, como for, o que até agora referi não é mais do que o eco do que sobre a novela se escreveu ao longo do tempo e através dos seus comentadores.
Esta visão, todavia, não é a que eu vislumbro. De forma que é tempo de apresentar uma versão diferente – a minha.
E começo por salientar o óbvio desta novela, ou seja, o facto dela se construir sob o princípio maniqueísta registado entre dois irmãos, cabendo a Eduardo a parte boa da história e a Noémia a parte má.
Quem o assegura? Somente Eduardo, que é quem narra os acontecimentos!
É este narrador de confiança? Não, não é!
A sua colocação no lado bom corresponde a uma mistificação do seu carácter, o que logo nos é revelado no início da novela, mormente pelo cuidado com que se apresta para a chegada da suposta noiva, aperaltando-se, de forma enfatuada e ridícula, com um cravo na lapela, brilhantina perfumada no cabelo, revista cinéfila na mão e um cigarro que consome por extravagância...
Perante o fiasco inicial, reveste-se duma superioridade mental que não engana ninguém senão ele próprio. Desta forma, verificando o fracasso da impressão primeira que pretendia causar na amiga da irmã, o objectivo de Eduardo não é mais o de apaixonar-se por ela, mas atenção, endoidecê-la, segundo uma problemática amorosa calculada, pois isso, diz ele, é o que importa. Ao que acrescenta: Seria irrisório! Estar uma rapariga em minha casa e não a fazer gostar de mim!
Nisto, crê, é um perito, a fazer fé nas aventuras amorosas que relata, um sedutor nato, que manipula descaradamente as suas vítimas, importando-lhe somente a satisfação dos seus apetites sexuais intimamente ligados aos de posse. A consciência deste poder é tamanha, que ele mesmo declara que todas as tentativas lhe são favorecidas ou toleradas, pelo que conclui, sem margem para dúvidas: Eu sei-o.(p.87).
Por outro lado, Noémia, a mulher feia, masculinizada, cuja sedução não tem os homens como destinatários, mas as mulheres novas de que se rodeia e que industria contra aqueles, não é mais do que a imagem, o retrato que dela nos dá Eduardo...
De Eduardo que, sobre a mulher em geral, não alcança conjecturar outra ordem de valores que não os que o enformam. Ou seja, não consegue idealizar a mulher fora do quadro erótico-sensual-romanesco-masculino-dominador em que se situa, o qual, por sua vez, faz parte duma sintomatologia mais vasta, nomeadamente a da necessidade de afirmação, nem que seja através de desforços ou álibis compensatórios, alguns dos quais ridículos de todo, para os fiascos que colhe.
Eduardo, desde o início, se nos apresenta como um ser sacrificado ao triunfalismo da irmã: ele não lhe perdoa nem a diferença de idade, que lhe rouba a primogenitura, símbolo do direito consuetudinário que pelo sexo lhe deveria caber; nem o espaço social que desfruta, a cidade em oposição ao campo; nem tão pouco a sua qualificação cultural, a par da sua independência económica, a qual o remete para o papel de indigente.
Em tal descrição, a própria ideia a que Eduardo nos conduz, de ser um escritor falhado, é, inegavelmente, um acto de compensação, mero desforço sobre o objecto ou sujeito que o paralisa; sobre Noémia, que se superioriza em todos os aspectos. Para justificar esta sua paralisia, comenta:

Já então Noémia, não sei à custa de que sacrifícios, cursava a Normal Primária, com uma tenacidade e um talento estranhos. Admiravam-na os mestres, as colegas disputavam a sua companhia, supunha eu por ser experimentada e a mais esperta da turma. Em casa… Não. Essa época em casa é dolorosa demais para lembrá-la. Direi apenas que por esse tempo me encontrei a mim mesmo, desesperadamente debaixo da obediência e do autoritarismo de minha irmã. Quando dei por mim, pela minha situação de dependência, de circunscrição no mundo senti-me traído, e comecei a chorar (…) Enfim, um belo dia veio o ordenado de Noémia que nos desafogou. Mas o pão de Noémia tinha um sabor cada vez mais amargo. Enquanto ela dava escola e cursava Direito como voluntária, eu comecei na vida de casa a ser apenas um tolerado. Por desculpa, só as grandes dores de cabeça periódicas. Em suma um estado psíquico cinzento e melindroso… Silenciosamente aproveitei, refugiando-me na poesia. Juntei todo um manuscrito de versos tristes, aferrei-me à ideia de revolver as bibliotecas, não tinha mais nenhum prazer na vida. Nem convivência, nem conversação. Concebia já o título e a ossatura dum grande romance… Ah, livro revolucionário, admirável, sim – mas Noémia nem sequer me deu tempo de esquematizá-lo…
Enquanto isto: “… ela, só pele e osso, formou-se rapidamente e com distinção na advocacia, ganhou o lugar de presidente não sei de que organização da cidade, dá aulas em colégios, manda-nos dinheiro, tem influência, é católica…
-Ainda havemos de vê-la deputada – desabafei eu um dia para a minha mãe.
-E a minha mãe levou logo aquilo para o sério, regougando:    
-E tu, comparado com ela, o que és?
-Olhe, um burro! De quem foi a culpa?
-Foi tua!
-Foi minha! Se eu soubesse o que sei hoje…


Porque cortaste a minha carreira e me rebaixas a toda a hora, Noémia, hás-de supor nesta reconstituição dos factos a continuação de uma revolta. Porém, acredita: já não me revolto, nem me vingo. A hora da exaltação passou. Também por minha parte não sinto remorsos, e tu, cheia de febre, deliras, pedes a morte, ameaças-me. Eu, por enquanto, nem sequer me compadeço… (p.80/3) – sublinhados meus.

Aonde a sustentação para a lástima que Eduardo exprime à laia de justificação: Senhora da minha infância, Noémia arvorou em senhora do meu destino. Afastou-me de si como um empecilho... (?).
Vamos por partes: que idade teria Noémia quando foi estudar ou se fixou em Coimbra? 16, 17,18 anos? Se sim, a idade de Eduardo seria a de seis, sete ou de oito anos! Aonde a consciência capaz de suportar o raciocínio de a irmã se ter afastado de si por o considerar um empecilho?!
Todo este arrazoado só pode provir de uma mentalidade doentia.
A ver: que mundo grandioso e imensurável foi proibido a Eduardo? Que carreira lhe foi cortada? Apenas uma: a de não ser o chefe da casa, algo que constitui grave ofensa à sua pretensa varonilidade.
Recorrendo a compensações psíquicas, Eduardo vai-se dedicar à escrita, à literatura. Este propósito, todavia, apenas tem uma causa: sobrepor-se à irmã no plano superior da Arte, já que não pode vencê-la em termos académicos e menos ainda economicamente. Claro que tais propósitos não passam de uma vaga inventiva, destinada a disfarçar a indigência, o seu fraco préstimo, a sua incapacidade em dar uma volta à sua vida. E então, mais uma vez (repare-se na adjectivação), convence-se a si próprio de que esse livro revolucionário, admirável, que lhe viria a dar notoriedade e dinheiro de imediato, foi sufocado por Noémia, que não lhe deu tempo para sistematizá-lo…
Repare-se no sentido megalómano destas justificações: na ideia da construção de um grande romance que, de imediato, lhe daria fortuna e fama – tipo tiro e queda, e que só não foi concretizado por as questões de dinheiro se encontrarem resolvidas, através das remessas de fundos de Noémia!
Isto só não é ridículo, porque é doentio...
Por tudo isto, bem podemos conjecturar a hipótese de Eduardo sofrer de uma doença mental! E aqui, recordamos: o pobre pai morreu louco, era eu criança... p.80), e, as grandes dores de cabeça periódicas... (p.81).
Com base neste raciocínio, podemos aceitar, igualmente, que o quadro existencial da irmã, tal como nos é relatado, não passa de mera projecção dos traumas e dos desequilíbrios mentais que enfermam Eduardo. Assim, por exemplo, a sua invectiva, Bêbadas, ao visionar a cena luxuriante com outras mulheres, mais não reflecte do que um acto de ciúme ao invés de um acto de condenação. Por sua vez, a resposta de Noémia, Abaixo os homens!, não passa duma projecção mais do seu modo de encarar a irmã, de lhe atribuir, a todo o momento, atitudes de afrontamento e de humilhação, segundo os seus próprios conceitos de afirmação machista.
Como se lê, todas as dúvidas nos são permitidas – dúvidas, aliás, que passam a perseguir o narrante.
Será que a cena lúbrica teria mesmo existido? Tal registo é posto em causa pelo próprio Eduardo, no final da novela, ao aventar a hipótese de esta ter ocorrido por via mimética decorrente de um quadro a óleo que pendia da parede do quarto da irmã:

Pergunto, no entanto, a mim mesmo, se aquela luxuriante representação posta a meus olhos, com Maria Noémia ao centro, lasciva e embriagada, não era o estranho quadro a óleo que, só agora sei, pendia da parede do seu quarto... E se ele mesmo me não deu a ilusão da pavorosa realidade no instante de luz que o alumiou. (p.160).

Por outro lado, temos ainda que a imaginação erótico/sensual de Eduardo condu-lo amiudadas vezes a sonhos orientais, qual sultão preocupado em distribuir equitativamente a sua pessoa pelo harém das belas e rendidas mulheres que subjuga:

Laida, Berta, Helena, Julinha, Leonor ou outras – que eu sempre amei e continuo a amar de harmonia com os seus dotes, visto que sou justo. A todas distribuo a minha ternura, a todas acaricio, se mo permitem – de todas gosto humanamente.(p.88).


Esta generosa partilha amorosa da sua pessoa leva ainda Eduardo à bizarra convicção de estar rodeado de um invisível círculo de bondade, como esse que os santos usam luminosamente à volta da cabeça (p.100).
Atrás, porém, desta espécie de aspersão amorosa santificada, sobre as pobres e infelizes mulheres que subjuga, esconde-se uma emergência sexual de domínio primário: Preciso duma mulher! – gritavam mais fortemente todos os meus músculos. Exigiam-na como uma desforra e como um bálsamo. (p.145)
Desforra e bálsamo contra o quê? Do exposto se conclui, pois, que Eduardo se julga um instrumento de prazer de natureza deífica. O que se esconde por de trás de tudo isto me parece óbvio: Eduardo procura substituir a irmã, quer no papel que lhe cabe enquanto entidade protectora da família, quer na capacidade que ela possui de angariar amizades e êxitos, o que ele não consegue, obcecado como está pelo desejo de domínio, devendo-se somente à tortuosidade doentia dos seus raciocínios o retrato e o relato dos acontecimentos em que ela é intérprete.
Até que ponto, todavia, não estará soterrada na sua mente uma outra obsessão: o desejo de incesto com Noémia? Pois que pesquisa ele, na alcova da irmã, senão o encontro com o arquétipo que se origina no complexo materno? A ver:

Ao passar pelo quarto da minha irmã, a porta escancarada tentou-me. Eu queria (e nesse instante nenhuma voz se opôs), queria encontrar o segredo de Noémia, da sua poderosa, inevitável sedução; queria revolvê-lo, palpá-lo, observá-lo, pô-lo a nu e finalmente desfazê-lo com estas minhas mãos... Estava ali, naquela obscuridade de alcova, pairando embora oculto, o mistério do sexo de Maria Noémia …
E: A correspondência, em pequenos magotes perfumados, inundou-me de gozo, ao tocá-los... (p.156-7) –
sublinhados meus.

Repare-se na expressão e nesse instante nenhuma voz se opôs... Que voz é esta? E porque lhe dá o manuseio da correspondência da irmã gozo e não asco, de acordo com a imagem com que a relata?
Sem dúvida, Eduardo é um ser possuído de um estado mental doentio onde as ideias da perseguição e da tentação sexual predominam.
A seu modo, Eduardo é uma outra espécie de Régio, que se debate não propriamente entre Deus e o Diabo, a concupiscência e a moral religiosa, mas entre ressentimentos sócio psicológicos que lhe vêm a determinar uma postura de falso domínio sexual em humilhação contínua. Deste modo, o tão criticado “prólogo” da novela emerge, simultaneamente, como um texto de autor de má consciência, e como a continuidade lógica da exposição de Eduardo – de Eduardo que, perante a irmã gravemente enferma, readquire, de algum modo, o seu precário equilíbrio psíquico, já que, agora, é ele o mais forte, o que lhe vem a possibilitar renovadas e fraternas explicações sobre o comportamento daquela, mas que mais não são do que álibis destinados a ausentá-lo da consciência de ser ele, e não Noémia, o verdadeiro ser anormal. Então, cínica e inconscientemente, bem se pode dar ao luxo de se mostrar misericordioso, quase arrependido!

Pobre Noémia! Todos no mundo a pisam e escorraçam. Eu mesmo a zurzi tão desumano como um soba, ao ponto de recear agora pela sua própria vida... De Noémia me condoo. É outra. Como uma criança...” (p.160/1) – ao que acrescento, por minha conta e risco: é
, enfim, um ser subjugado!

Esta é a interpretação que faço desta novela, situando-me, pois, em oposição a tudo quanto sobre ela se escreveu ao longo destes anos. Atenção, porém: de nenhum interesse é averiguar quem está certo na interpretação que aduz, se sou eu ou os outros. Na realidade, o que importa salientar, é a dupla ou tripla sedução que na novela sobrevive, e que tem ver tanto com os percursos imaginários que desencadeia nos leitores, quanto com a potencialidade criadora que revela na construção psicológica e comportamental das personagens.

O mais não é de interesse menor, já que nos situamos praticamente face uma obra de estreia, caracterizada por uma subtil ambiguidade e por uma sólida visão de comportamentos humanos que oscilam entre a pureza e a lascívia, o triunfo e a derrota, em derrames de ternura sentimental, romântica por vezes, e por exaltadas ressonâncias de erotismo sensual, enfim, por marcas muito profundas de ternura e de brutalidade, motivadas por antagónicos sentimentos, motivos mais do que suficientes para não nos espantarmos com a sua modernidade.

Porque o facto é este; a mais de meio século da edição primeira desta novela, o carácter de obra-prima que lhe está subjacente, com ou sem reconhecimento público, mantém-se hoje inalterável, convidando o leitor não só para renovadas apreciações analíticas, como para a sua releitura, ditada somente pelo prazer de conviver com uma obra singular.

Para finalizar, em tudo isto sobrevive, ainda hoje, algo que nunca compreendi: o facto de Sedução ter escapado incólume à fúria dos censores salazaristas, católicos e de bons costumes, ao longo das quatro edições sob tal jugo (1937, 1948, 1960 e 1972), tendo em conta a temática sexual que eu considero conflituosa para tais tempos!



 

 
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