Inquérito a 21 entrevistas com José Marmelo e Silva (1943-1987)
Ernesto Rodrigues
Universidade de Lisboa
A entrevista é um diálogo real ou fictício, em busca de um retrato, de informes e opiniões que tangem, ou não,
à fonte. Há auto-retrato, se houver rede intrapessoal, numa das soluções típicas de certo jornalismo preguiçoso.
A primeira das 21 entrevistas literárias, entre 1943 e 1987, que reunimos em O Mágico Pressentir do Artista (2011) faz desconfiar desta prática, em 1948. Num esforço de verosimilhança, o Jornal de Notícias di-la
«(Dum nosso correspondente especial)», mas não engana. Não há correspondentes ‘especiais’, se não é, aqui,
o mesmo autor. Cresce a desconfiança, quando se justifica este «longe, no desempenho do serviço militar», sem dizer onde; mostra-se o rabo do gato, ao acrescentar: «Descobrimo-lo algures e fizemos-lhe as perguntas habituais.» Tanto ruído, como se diz em teoria da comunicação, só denuncia auto-entrevista. Nenhuma censura explica a rasura do lugar, se se dá o nome do autor, em vias de ir para a tropa, ou num intervalo. Imagina-se conversa de café, ou quatro respostas tópicas enviadas da Madeira.
Quanto às perguntas, há duas não explicitamente marcadas e vagas: «que obras tinha entre mãos ou projectadas» vai ser uma dúvida fácil de charla ociosa, ainda em duas entrevistas inéditas, uma delas enviada ao também escritor Manuel do Nascimento (1912-1966); outra, «acerca da poesia», nada avança, sobre o geral e sobre o particular, em vésperas dos “Poemas da Ilha do Porto Santo”. E acrescem duas perguntas sob a desaconselhada forma negativa, além de aleatórias: «Não lhe interessam os novos rumos das letras?», «Não crê num ressurgimento da novela, entre nós?»
Esta entrevista, no seu informe auto-retrato, seria, pois, fictícia, adjectivo que calha melhor a composição quase sempre da responsabilidade do jornalista: ou porque não autorizada (em resultado de uma conversa off the record, por exemplo), nem caucionada (se houve acordo quanto à leitura e assentimento prévios do entrevistado), mas aceitável quando este já está morto, dando a conhecer inédito ou daquele cozinhando o que se tem por pertinente – respostas anteriores ou que se lhe põem na boca, em função de cortes num texto corrido –, assim avivando um retrato ou definindo uma questão.
Fora desta tipologia, porque forjadas de cima a baixo, eram as primeiras “interviews literárias”, que o diário lisboeta O Universal anuncia em 9 de Março 1892, «com personagens importantes e macabros da capital e mais partes do reino», ou «com as figuras cuja moleirinha mais alveja entre a multidão dos talentos pátrios» (10-III).
A série “Acerca de Os Nefelibatas”, de certo frei António, leva-nos a visitar Abel Botelho, Melo Barreto, Tomás Ribeiro, Chagas e Teófilo, o Cardeal Patriarca, o governo e a oposição, mas é Ramalho Ortigão quem dá os melhores «conselhos sobre o que fazer com os nefelibatas: “Um passeio de manhã, à inglesa, depois de um bom douche pelo espinhaço abaixo... A barqueação dá também um excelente resultado. Ponha-m’os ao sol, à luz; que tomem banhos de mar”. Indagado sobre os “de fora”, não hesita: “Doentes... Não se entendem... Que comam bem, que vivam como toda a gente, que trabalhem!... Porque há muito mais sinceridade n’uma página da História trágico-marítima [...] do que em todos os livros d’esses senhores.” Insistindo o jornalista sobre a gente nova, Ortigão é taxativo: “Fosse eu pai deles, que eu lh’o diria!... Eu lhe daria as poesias p’ra ali com um bom marmeleiro!”» (15-III) Já, entretanto, frei António / Alberto Bramão (1865-1944) inventara o poeta Alberto Cantagallo, nado em Fornos de Algodres, conflituando com Melo Barreto, mas não só: «Eugénio de Castro, por exemplo, seria “compreendido quando todas as nações estrangeiras quiserem governar em Portugal”» (16-III). Gouveia Pinto critica o vestuário dos novos poetas: “Olhe, esses nefelibatas são uns literatos de calça apertada, vestem pelos
algibebes da rua dos Fanqueiros, não têm a mínima noção do que é vestir bem. São uns gauches!” (23-III) Retrato forjado ou não, questão candente ou paródica, ambos exigem
reportagem, uma investigação anterior: como se chegou ao assunto, que ‘luz’ o envolve, por onde passa a ‘moldura’ deste rosto, etc. – isto é, demasiados elementos que, partindo de uma ou várias entrevistas, transcendem estas para implicar, igualmente, o repórter. Assim se prepara um bom entrevistador.
Ora, no limiar de cada apresentação crítica, repetindo as parcas obras editadas, constante será a rasura da estreia de 1932. Nenhum redactor fez o trabalho de casa, de modo a questioná-lo sobre texto renegado.
Descobrem-se, também, pouco habilitados para discutir Presencismo, Neo-Realismo, Surrealismo, Existencialismo, com parcas achegas de autores estrangeiros.
Ressalvem-se duas heresias: no Diário Popular de 13-VI-1848, correspondendo à segunda entrevista, insinua-se um transvase entre a Presença e o Neo-Realismo: «Na geração literária que sucedeu à da Presença e em muitos aspectos lhe recebeu a influência, Marmelo e Silva é, sem dúvida, um dos nomes mais significativos.» No Diário Ilustrado de 21-III-1959, correspondendo à quarta entrevista, o autor emerge em pleno Neo-Realismo, conquistando, com Sedução, «um lugar deveras ímpar na ficção da sua época e, mais do que isso, dentro da
novelística portuguesa de todos os tempos. E o que mais surpreendia, naquele pequeno caderno amarelado, era o equilíbrio da forma e a sua perfeita funcionalidade junto do tema: isso lhe garantia uma função ímpar dentro do descabelado de quase todos os homens da sua geração (exceptuando aqui Carlos de Oliveira), preocupados com um mergulho no imediato, sem cuidarem muito da maneira como a experiência obtida era comunicada.» Curioso processo ao Neo-Realismo, em órgão donde sairão futuros ortodoxos marxistas…
Quando inexiste investigação sobre o entrevistado, que facilite debate e aprofundamento, esse óbice é regularmente contornado por ligeiras notações atmosféricas ou ambientais, registando risos, exclamações, pausas, sinalética do interlocutor no seu próprio teatro de gestos. Mas é preciso ser comedido. José dos Santos Marques incluiu-se excessivamente, na terceira entrevista. Estas intrusões são lamentáveis. Fala da natureza circundante, di-lo «categórico», comunga da sua opinião («Na realidade, também nós não gostamos de afectação.»), qualifica uma pergunta como «intencional» ou «oportuna», indaga e objecta, concorda, acentua, insinua – verbos pouco recomendáveis –, sobressalta-se com resposta «um tanto inesperada para nós», exclama, «incrédulo», e outras subjectivizações, que nada acrescentam.
Releva da forma mista, depois que a entrevista sob forma narrativa se aproximou demasiado da reportagem junto de um sujeito, do qual só aqui e ali vai nascendo algum discurso directo. Nenhuma novidade traz – embora a décima oitava, por Fernando Assis Pacheco, sendo um distintivo de época e de escola, avoque excertos de Nudez Uivante –, se se conhecer Da Loucura e das Manias em Portugal, de Júlio César Machado, em 13 folhetins no Diário de Notícias e em livro no mesmo ano de 1870. Referimo-nos aos quatro primeiros capítulos, sobre uma visita ao Hospital de Rilhafoles, em que o jornalista, ao lado do respectivo
director, reporta o que vê, conversa e transcreve diálogos.
Como género, técnica e um fim em si, sob forma predominantemente dialogada, a maioria das 21 deixa bastante a desejar. Há crónicos narizes-de-cera do jornalismo, e não só em 1948 – segunda entrevista –, quando, sem pergunta prévia, lemos: «Começou por nos dizer:». Pior é um ponto de interrogação, isolado, no início da oitava; ou insinuações feitas de reticências.
A clássica entrevista individual confronta duas visões (dizer duas personalidades não prevê o facto tão corrente de o jornal poder enviar dois e mais redactores ou de, mesmo, a outra parte aparecer multiplicada) alternando perguntas e respostas, marcadas seja por travessões, seja por uso de negros e itálicos, pelas iniciais das partes, pelas consoantes P e R., seguidas de ponto e travessão. Esta questão visual não levanta problemas. Quanto a ser, sempre, aquele confronto, educado, mais devagar. Que modalidades entrevemos? Não a mesa-redonda. Se são várias as cabeças e os sentimentos confrontados com um ou mais jornalistas à volta de uma mesa e de uma série de temas, temos a mesa-redonda, às vezes dividida por várias
edições. Cabe aos anfitriões, quase sempre na própria Redacção, dirigir e moderar, jogando a favor da novidade as eventuais contradições e a controvérsia.
Nem a conferência de Imprensa. Numa relação mais distanciada, com um ou mais porta-vozes e ombreados por jornalistas concorrentes, dá-se a conferência de Imprensa, que se distingue, ainda, por a iniciativa
partir do exterior da Redacção. Ela pode acontecer, todavia, em lançamentos especiais, para que se convida exclusivamente a Imprensa. Noutros casos, já vai havendo diálogo com públicos indistintos. Aparentemente agitada, é a menos viva e, até, concorrida. Escolhe-se a
hora em função da hora de fecho dos jornais ou abertura de noticiários, mas, desde a véspera, se não quer limitar-se ao press-release ou a um discurso quase sempre formalizado em comunicado, o redactor pode já saber o que se vai passar num espaço dominado por
quem convida – e que responde como e a quem entende ou sai quando lhe apetece.
Variante dessa, e mais recente, é a pool, em que se sorteia (e até falseia) um conjunto de repórteres credenciados para espaço reduzido. Tornou-se usual em cenários de guerra e catástrofes. Sofre das pechas da conferência de Imprensa, embora aconteça mais em cima da hora e a sua natural selectividade e particular matéria justifiquem outra atenção e presença.
Iniciativa de dentro ou de fora – e, neste caso, a rogo da Direcção – é a sondagem, que resulta em série de quadros e gráficos, com leitura da Redacção. Baseia-se num universo definido de respondentes e numa bateria de perguntas breves e claras sob forma de inquérito.
Modalidade mais democrática é o inquérito, enquanto pequena entrevista, também ao vivo (num frente-a-frente, por telefone) ou por escrito, a que vários entrevistados sucintamente respondem à mesma ou mesmas questões, destacadas graficamente do conjunto. O que há de discurso jornalístico na sondagem perde-se ou reduz-se aqui;
o que, além, é demorada análise, interpretação, resumo, passa, aqui, a discurso directo; se aquela vive por si, este acompanha, muitas vezes, a actualidade mais premente e é menos politizado – embora uma sondagem de opinião possa versar a infinidade de assuntos de que se faz a mesma opinião...
Os objectivos e métodos é que devem ser explicados nos dois casos, desde logo porque o inquérito, apesar de hiper-selectivo, parte de frágil amostragem; aqui, as conclusões calham mais ao leitor. É da ordem do inquérito um conjunto de entrevistas a Marmelo e Silva, breves, de perguntas-tipo e respostas sucintas. “Dez minutos com…” (XIII), “Os escritores falam do que escrevem” (XIV), “Breve encontro com…” (XVI), além de uma televisiva (XVII). A décima terceira, aliás, confessa o insólito de alguns inquéritos: vêm de Espinho respostas
«para uma entrevista»… Às vezes, acontece isso: o autor diz o que pretende, encarregando-se o receptor de inventar perguntas ou buchas narrativas.
Da vintena de conselhos que nos dá Mário L. Erbolato (Técnicas de Codificação em Jornalismo, 1979, p. 148), gostaríamos de salientar alguns pontos, com leves acrescentos entre parêntesis rectos, em que pecam muitas entrevistas, e, no caso vertente, a José Marmelo e Silva:
«6 - Faça as perguntas de modo concreto [e sem considerandos], para obter informações seguras e completas.
7 - Não corte as respostas. Espere que cada uma delas termine, antes de formular a próxima pergunta. [Evite silêncios. Nota-se silêncio quando, podendo explorar um assunto, se diverge para pergunta sem concatenação,
a caminho da despedida.]
8 - Se o entrevistado divagar e fugir do assunto, recoloque-o no roteiro previsto, na pergunta seguinte. [Os monólogos em nada ajudam; as respostas longas, de resto, terão de ser cindidas, o que pede respostas desdobradas aquando da redacção final. Técnica difícil, aqui, feita de apartes.]
9 - Não discuta com a pessoa, se ela emitir uma opinião contrária ao seu ponto de vista. [A discordância mostra-se, serenamente, através de outra pergunta encadeada. Eem texto corrido, qualquer erro significativo pede, imediatamente a seguir, entre parêntesis curvos, a partícula sic. Algum deslize ortográfico ou de data foi corrigido pelo próprio autor, em cópia da entrevista.]
11 - Não emita a sua opinião, a menos que ela seja solicitada, e assim mesmo com modéstia e humildade. [Não falta mau gosto, por vezes, na elaboração da pergunta ou em comentários excrescentes.].
12 - Ao fazer uma pergunta, tenha em vista a riqueza da resposta e não apenas uma afirmativa, ou negativa, ou um talvez. [Não deixe pairar as meias verdades e contradições; neste caso concreto, as rasuras, seja da estreia, seja de interditos sugeridos.]
14 - Faça as perguntas no mesmo nível de quem responde. Pode acontecer que a entrevista seja importante, por ter sido procurada uma pessoa que saiba bastante sobre algo que ocorreu, embora humilde. [A flagrante desigualdade entre quem pergunta e quem responde – descontada uma que outra entrevista, entre as quais, as de Serafim Ferreira – só prejudica o autor.]
15 - Esgote cada área do assunto, antes de passar para outra.
16 - Se necessário, faça alguma pausa, para evitar que o entrevistado se canse. Procure imprimir um pouco de humor ao diálogo. [Inexistente.]
18 - Prepare o terreno para cada pergunta. As coisas mais cruéis e indiscretas podem ser indagadas se o jornalista tiver o cuidado de se ir conduzindo com habilidade.» Poucos seguiram estas recomendações. O como e porquê da entrevista, e um retrato abreviado, seja da matéria nos seus pontos fortes, seja do interlocutor, comparecem deficientemente na abertura das peças, nem todas assinadas, antes de se proceder à transcrição do diálogo. Em volume, tornar-se-ia fastidioso dar linhas que ignoram a simples ideia de lead. A dificuldade maior, e segunda opção do editor, foi trabalhar os títulos. Na segunda entrevista, escolhemos como cabeça “A «parcialidade crítica»”, quando, no Diário Popular, está “O homem imaginativo continua oriundo da montanha e da planície e não da cidade – diz-nos Marmelo e Silva”. Estes verbos declarativos acompanham demasiados títulos, quando a norma evoluiu para colocar o quem da peça em antetítulo. Um título é decisão de jornalista ou colectivo, que citam, interpretam, traduzem um pensamento. Deve o editor literário, atento às correcções a posteriori do próprio autor, e, sempre, adequando este ao novo tempo, propor outros? Denuncia-se o acriticismo de quem o ouviu, incapaz de questionar frase passageira que escolheu para título, e, por isso mesmo, autorizando-nos a substituir um quadro sociológico por outro, com mais densidade textual? Que sentido fazia, hoje, um título daqueles?
Confessemos outra substituição titular na quarta entrevista, vaga e inútil: «A exacta expressão plástica do povo português ainda não foi encontrada – declara José Marmelo e Silva». O que significava, e significa, isto? Que títulos abstrusos são estes, que nem sugerem um contexto? Preferimos, assim, «Adolescência ludibriada», duas palavras que resumem parte de um projecto ficcional. É também demasiado neutro Álvaro Manuel Machado, reduzido a «Diálogo com José Marmelo e Silva», na sexta entrevista, enquanto a terceira, “Conversa entre plátanos”, não nos convence – mas é de livro –, não melhorando o primevo título, “Breve encontro com Marmelo e Silva”. O mesmo problema de contexto afecta a décima quinta: “José Marmelo e Silva face às críticas feitas ao seu último livro”, a propósito de O Ser e o Ter seguido de Anquilose. Preferimos um título-pergunta, reactivo, conforme á diligência autoral: “Algum dia, como artista, me cingi eu a cânones pré-fabricados?”
Quando se procurou acertar graficamente o título da sétima, foi preciso substituir «regressa» por «volta»: «O Neo-Realismo português / volta à Europa, enriquecendo-se / estética e metafìsicamente». É adulteração lexical menos grave que as semânticas. Outro arranjo vem na décima, em «desenfreadas e pessoalíssimas respostas», diz nota introdutória, suprimida: «A vida é a nossa única oportunidade cósmica: não podemos esquivar-nos à [à nossa, no original] responsabilidade de dignificá-la». Evitar a repetição do possessivo em título compreende-se. Por nós, escolhemos: «Ficção é meio técnico (superior) de estruturar verdade».
O ar do tempo pesou na oitava, excelente para estudar Sedução, «como um argumento de ballet», ideia inesperada, que chamámos a título. A frase-guerrilha que abriu o suplemento ‘Vida Literária’ do Diário de Lisboa tornava-se, agora, inútil: «O existencialismo só existe entre nós como doença – afirma Marmelo e Silva».
A décima nona ficaria risível, com este título: «Espinho é uma cidade sem cultura de cidade!”
O título vigésimo, «Não aceitei a ortodoxia”, participa de uma longa peça, sendo a entrevista segunda parte.
O título geral é: «O Neo-Realismo não é só o que eles querem». Eles, quem? Um tu cá, tu lá educadamente polémico seria mais útil do que muitas dissertações que passam por este senhor como gato por brasas. Quanto às posteriores correcções autorais, vão assinaladas em rodapé, salvo uma. Na nona entrevista, aproximámo-nos do título de Defesa de Espinho, onde se lê: «O problema base da minha ficção é o da educação do homem como um direito e como um dever». Pode, como no caso da décima oitava, ser reposto. Mas suprimimos, sem indicação, dois parágrafos riscados, seguindo o primeiro parêntesis: «Quanto a mim, falemos com franqueza: eu escrevo com sangue. § Quando escrevo, abro as minhas próprias veias… Nisto, observando bem, pode descobrir a razão do meu silêncio.»
É este um leitmotiv dos entrevistadores, críticos para quem publica tão espaçadamente. Outro é a refundição dos textos ou sua relocalização. Volumes, ou títulos, anunciados em 1959 falharam – Terceiras Minas do Mundo, romance, e Fogo-Posto às Fábricas, novela, aquele anunciado em Sedução –, como falharam, em 1960, Se Ruega Silencio… e Ladrão da Minha Herança. Segundo entrevista inédita de 1961, o penúltimo faria uma comparação entre o «comportamento das raparigas de hoje – refiro-me às raparigas de vanguarda, evidentemente – com o das raparigas do meu tempo de consegue, penso eu, adquirir resposta concreta nestas novelas presentes em Se Ruega Silencio…» Quanto a Ladrão da Minha Herança, o romance seria concluído em 1959 e, depois, em 1961, sem êxito, anunciando, contudo, matéria de Desnudez Uivante e de “O Cabo Abílio”: «[…] nasce da minha experiência de miliciano mobilizado durante a Guerra.»
Com um programa de novo Terêncio, tocha ardendo na frente das consciências, contra o intelectual alienado. José Marmelo e Silva assume como problema-base da sua ficção a «educação do homem como um direito e como um dever» (Defesa de Espinho, 25-XII-1965). Se os entrevistadores pouco ajudaram, ele não deixou de veicular a sua lição. Sintetizando, entrevemos na sua palavra, e já escrevemos, «(1) as condições de concepção e nascimento, a partir do berço, da matéria observada e vivida, com resposta ao porquê da escrita, registando os primeiros textos em letra de forma e incisões do cutelo da censura política; refiguração titular, composição dos volumes e correcção ou refundição de obras – algumas, anunciadas, mas sem amanhã [ainda em 23-V-1987, na última entrevista, anunciava O Anjo], enquanto “O Cabo Elísio” nunca é citado; (2) vemos como emergem considerações sobre o género literário praticado – lembrando processos de contaminação – e defesa de uma técnica ou estilo consequentes; (3) como se opera uma revisão de meio século de literatura portuguesa (grosso modo, dos anos 30 aos 80, com aceno ao pós-Orpheu de 1915, ao quase sempre verberado Presencismo), seus píncaros, movimentos de inspiração estrangeira (Existencialismo, Novo Romance, Realismo Fantástico, retoma de Gramsci…) e principais autores, diagnóstico das maleitas, suas preferências; e, recorrente,
a situação do autor (3. 1) face às dificuldades económicas e sociais na esfera privada, (3. 2), face a processos deformadores ou aviltantes da adolescência e juventude, no regime de internato, militar e nacional, com olhar sobre os métodos e, mesmo, manuais escolares, (3. 3) ou já questionando o conceito de erotismo, (3. 4) na relação particular com o Neo-Realismo, cujas limitações desejava superar; enfim, (3. 5) face à indústria editorial e suas formas de promoção, e (3. 6) face à crítica».
Voz da geração de 37, como gostava de dizer, José Marmelo e Silva obriga a Universidade a revisitar o conceito de Neo-Realismo, cujos especialistas escamoteiam quem ultrapassa escolas. E se, em literatura, ainda há vozes autorizadas, fique este conselho, sem ser remédio santo: nunca mais se passe ao lado do que o próprio autor afirmou. |