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O mapa de Korzybski
In Letras & Letras
5 de Março de 1989-nº15

por Maria da Glória Padrão

José Marmelo e Silva é um escritor injustamente esquecido – propositadamente se faz esta afirmação que se tornou um lugar-comum como denunciou já Eduardo Prado Coelho que também questiona possíveis causas desse esquecimento (1). No entanto, ao longo de cinquenta anos (que a mais remonta a actividade deste criador de textos), têm aparecido sobre a sua obra críticas variadas. Umas opinativas, outras impressionistas, outras de outra ordem conforme o material criticável que se constitui em busca, mas quase todas pretendendo julgar e bem poucas podendo compreender.
Talvez não seja muito rigoroso designar o conjunto das metalinguagens publicadas como textos críticos. Ou, sequer, interrogar por agora o que é essa “corporação fictícia” como diz José Blanc de Portugal, que são os críticos. Ou, sequer, não será o momento de colocar a crítica no ciclo de produção-consumo, nem fazer considerações sobre a descrença nos críticos por parte dos criadores, mas o requerido recurso a eles, às vezes de forma insistente para não dizer impertinente.
Não é o momento de nada disto. Mas só o de lembrar que aquilo a que se chama crítica, apresente ela que modos apresentar, não pode assumir por muito que queira ou goste, o exclusivo da sua verdade, da sua ortodoxia (Jorge de Sena), porque não há ortodoxia. O exercício crítico não é mais do que um exercício de liberdade da parcialidade e está desde o princípio sujeita à sua própria fragilidade e à sua falácia. Será um diálogo pálido com a obra, um corredor de efémeros, só isso. O que, naturalmente, se tem pertinência em relação à obra de qualquer criador (não falo de escreventos), o tem, por isso, em relação à obra de Marmelo e Silva.
Não se esgota neste artigo – que a isso não se propõe – uma leitura interpretativa da totalidade dos textos críticos da obra do escritor. Nem se esgota por isso, mas não só por isso, o cotejo dos resultados na globalidade. Nem sequer o material tratado é todo do mesmo teor. Aqui se junta a carta de Régio e uma carta tem outros protocolos.
A maior parte dos textos críticos cotejados foi publicada em jornais o que significa que a comunidade de recepção é vasta e o que faz entender a importância que pode ter a Comunicação Social na formação da mentalidade também em relação ao objecto cultural. E quando se faz o confronto das críticas publicadas em jornais ou afins, na sua diacronia e nas linhas de insistência que são escolhidas, percebem-se melhor os comportamentos mentais desta terra que se chama Portugal. Ou Ocidente: em que o lugar fixo da perspectiva tem por nomes Verdade, Bem ou Modelo. Coisas assim.  O lugar na História
A literatura não é a história dela própria, como muito bem se sabe. Mas há a “história da literatura” que se faz tanto da “literatura” como da sua recepção, como também já muito bem se vai sabendo. E no caso dos críticos, a história além de uma hermenêutica, continua a ser um espaço de segurança com que se autorizam e se protegem.
Começa exactamente na pesquisa de um lugar no tempo mensurável para colocação dos textos de Marmelo e Silva a primeira perplexidade porque não se lhes encontra o “lugar certo”. Na “História da Literatura Portuguesa” de António José Saraiva e Óscar Lopes (8ª edição), o escritor é arrumado pacificamente em sete linhas (quatro das quais asseguradas por títulos) no capítulo “do Neo-Realismo à Actualidade”. Mas já antes disso, Óscar Lopes o considera um escritor bem marcado: «O facto de Marmelo e Silva e eu professarmos uma estética de tradição neo-realista...» (2). Entretanto, Alexandre Pinheiro Torres, papa do neo-realismo, omite-lhe o nome em “As Grandes Correntes da Literatura Contemporânea”(3), exactamente na vertente que lhe competiu nesse volume, como também o omite no livro que traz o enganador título “O Neo-Realismo Português”(4), engano naturalmente veiculado pela partidinha de um mero artigo definido... 
Outros críticos o colocam às vezes sem justificação também no neo-realismo, mas não importará muito qualquer justificação: a crítica marxista entre nós salvaguardadas as excepções que há sempre, baseou-se particularmente na economia (mais do que na sociologia) e binómio rico-pobre é empirismo de fácil entendimento. E se a crítica marxista tanto nos seus fundamentos como nos seus métodos, tem outros pressupostos e caminhos, entre nós tudo se resolve com magnífica simplicidade e candura. Somos uma língua com excesso de diminutivos, já muitos o disseram...
Apesar da tão acomodatícia arrumação, a tendência mais generalizada é a da bifurcação: Marmelo e Silva fica mais ou menos esquartejado, um pé na geração de 37, o outro na seguinte. 
Em texto de 1967, Mário Sacramento afirma: «A obra deste escritor tem ela raízes várias, que não importa averiguar de momento. Atenhamo-nos apenas à circunstância de geração de 40 ter prolongado e renovado, por um lado, a da “presença” que a precedeu; e ter-se-lhe-á oposto, por outro, o que foi condição indispensável à eclosão do neo-realismo. Em qual destes dois ramos ou momentos se inclui a obra de Marmelo e Silva? Inicialmente, no primeiro; posteriormente, no segundo» (5). Fica esta citação como síntese do posicionamento de outros críticos do escritor e que inclusivamente se encontra de algum modo repetida por Álvaro Manuel Machado ao qualificá-lo como escritor de “transição” – que designativo apaziguador! (6). 
Da preocupação da topologia, uma coisa resta clara: ninguém o diz escritor especificamente presencista. Os homens da “presença” não o fizeram, nem de o rotular tiveram necessidade. Bastou-lhes, tão-simplesmente, abrir-lhe as páginas da sua revista e saudá-lo assim, por acolhimento de texto. Assim e doutros modos, públicos e privados. E a carta de Régio, agora publicada, tem toda a atmosfera do manifesto do movimento, manifesto que ele próprio escrevera. E dessa espécie de iluminação total, essa espécie de «ter nascido assim», essa espécie de «qualidade», também dá conta João Gaspar Simões quando, em relação a Sedução, imobiliza o escritor dizendo do livro que tem «um amadurecimento além do qual já não há progresso» (7).  
Outros o colocam de outro modo. Arnaldo Saraiva deixa-o um pouco sem a outra margem, numa espécie de suspensão: «E não deixa de ser curioso notar que Marmelo e Silva se antecipa real e simbolicamente à “geração” em que poderá integrar-se e em que nunca verdadeiramente se integrará, ou será integrado, apesar de a ter ajudado a formar-se» (8). Lugar de antecipação, de resto, de quem também já Serafim Ferreira tinha falado e onde depois o situa. (9)
O certo é que não se chegou a um “resultado”. Presencismo ou neo-realismo talvez «não se sintam à vontade perante esta obra» que tem «algo de perturbante», como disse Eduardo Prado Coelho que também cita a “profecia” de José Saramago; «José Marmelo e Silva há-de vir a dar muitas dores de cabeça aos historiadores da nossa literatura» (10).

 

Outros tópicos de racionalidade
A questão da fixação de residência na história é a prossecução de uma linha de racionalidade (e também continuação do que foi o mito da história no século XIX). E é quase sempre na continuidade do racionalismo que se vai escrevendo o discurso crítico sobre a obra de Marmelo e Silva.  
É na mesma linha classificatória que se lhe colocam os epítetos de “clássico”, de “contemporâneo”, de “moderno” e se fala mesmo de “modernidade”, e até de “barroco” (Urbano Tavares Rodrigues) ou de “pícaro” (Óscar Lopes e Sacramento). Mário Sacramento, por exemplo sobre Adolescente Agrilhoado, diz-se «que é um dos casos mais notáveis da moderna literatura portuguesa» para, quase logo a seguir afirmar «releio o livro como se lesse um clássico» (11), de «clássico equilíbrio» fala Albano Martins; Serafim Ferreira declara que Marmelo e Silva está «no primeiro plano da nossa moderna literatura». Arnaldo Saraiva coloca a posição mais radical da “admirável modernidade” de Sedução; Baptista Bastos confunde mais ao falar do escritor como “clássico e contemporâneo” (12). Por vezes, surgem as tentações aos assaltos do “comparativismo” – que o não é, mas tão-só uma tabela de referências em que as atitudes, ou os livros, ou o livro que no momento se comenta, podem recomendar. Camilo, Eça, Aquilino, Torga, Teixeira Gomes, Rodrigues Miguéis, Garrett, Rabelais, Almada, outros: o largo espectro que se alia à classificação de “clássico” ou de “moderno” porque, se as palavras são sinais de orientação, estas e os seus contextos, cobre noções largas e imprecisas. Nenhum crítico fornece os códigos da abrangência das designações ou das analogias – e os códigos resultam de conjuntos de convenções – como se a comunidade de recepção fosse uma comunidade baseada no saber e no manejo fácil das normas e seus matizes, crítico a crítico.  
É ainda (e será muitas vezes) a questão do manejo códigos e sua razão que leva a anotar as “imperfeições” dos livros de escritor, ou da sintaxe dos seus livros. De Sedução, Irene Lisboa afirma que a sua «estrutura não será correcta» e que é «um trabalho literário sem muitos definidos precedentes, audacioso, simples, enérgico e irregular» (13); Arnaldo Saraiva, também sobre o mesmo livro diz que nele «o escritor não evitava pequenas falhas típicas das obras de juventude»; Óscar Lopes declara e reitera os “erros” de Adolescente Agrilhoado: «os títulos e as reflexões de ordem ética com que tais títulos se justificam no texto não se ligam como o melhor da efabulação», ao longo do livro notam-se «certas falhas de autenticidade dialogal», «é pena que Marmelo e Silva se tenha sentido na obrigação de justificar sentimentos», «sente-se-lhe uma certa retórica», (que texto a não tem?).  
Mas “irregularidades”, “falhas”, em relação a quê? A que valor? A que norma? Qual é o figurino? Não importa. Como árbitro, o crítico condena o desvio a um modelo (que modelo? De quem o modelo?) e administra e castiga ou absolve a injustiça de cada infracção. E no cenário da impessoalidade de um modelo invisível para o leitor, a parcialidade do crítico, já contaminada por uma situação de gosto e de desgosto ou já pondo questões de razão estética (que também é uma questão social porque a norma de gosto é uma norma social), mantém a topologia da abordagem do texto do criador através de exterioridades.
Que também são outras. A dos juízos morais, por exemplo, em valor é outra forma de Bem. Estamos agora, no terreno da crítica ética condenatória ou laudatória. Audácia (Irene Lisboa), coragem (Mário Sacramento), ousadia (Urbano Tavares Rodrigues), transgressão, sem preconceitos (Serafim Ferreira), pornografia (Maria Alzira Seixo) – pertinências ou impertinências com que se olha esta escrita deste escritor. Mas voltamos ao mesmo: audaciosa, ousada, transgressora, despreconceituada em relação a quê? À norma moral da sociedade. A que interditos corresponde este tipo de apreciação? Ou a que desejos? Pornográfica em relação a que escala de juízos? A mesma coisa. E se transgressão, ousadia, arrastam ou podem arrastar uma apreciação de sinal positivo, pornografia é uma palavra fortemente condenatória já que na comunidade social é um conceito moralmente nocivo. Aliás, a crítica ética acaba também por ser manifestada por José Régio em nome de outra identidade... E tudo vai contribuindo para a chegada à crítica como cadáver ou para a sua falência. O Livro continua lá, noutro lugar.  
Ainda outra gazua exterior, e que fez época, é a crítica biográfica que parte do pressuposto de que uma obra é a transposição de uma vida e assim se vai à procura da personalidade do autor enquanto ele é pessoalmente e não se busca o ser da escrita. Voltando ainda a Mário Sacramento, esta saborosa transcrição: «Se disser que isto está conforme com a carreira de educador que Marmelo e Silva profissionalmente seguiu, creio ter explicado, em parte, o que o levou a deter-se. E apraz-me supor que só transferindo-o para uma escola de adultos seria possível convencê-lo a ultrapassar o limite... Apraz-me, repito, porque há uma grande coerência e uma feliz harmonia entre um aspecto e outro. E isso não é das mais pequenas coisas que prezamos no duplo homem-obra. Vejo-o, antes de ir às sortes em Narrativa Bárbara; esfolando a cicatriz do internato em Adolescente Agrilhoado; cumprindo o serviço militar em Depoimento; mobilizado como alferes em Ladrão!. E depois! The rest is silence...». Por isso, Homero amou Helena de Tróia não se sabe na figura de qual dos dois que lá se guerreiam; Camões viveu as aventuras de Fernão Veloso; Alberto Caeiro apascentou rebanhos. E assim Mário Sacramento também abre naturalmente caminho para chegar à psicologia para descobrir o temperamento do escritor (ah! Sempre o século XIX!). Mas esta vertente da psicologia tem nela ainda outros “médicos”! E, quase que num processo de encadeamento lógico, ela conduzirá inevitavelmente ao vício dos processos de intenção. (Ainda Mário Sacramento, por exemplo).
E assim sucessivamente.
As críticas estão aí, estrangeiras à obra. A obra não se reconhecerá nos seus pretensos espelhos.
Na linha racional positivista, dever-se-á referir a recensão crítica de Maria Alzira Seixo (14) mas sobretudo, embora sempre impere Aristóteles, um estudo que marca uma data no discurso crítico de Marmelo e Silva: o que quero referir é exactamente a situação num quadro de época da primeira edição de Sedução e a visita ao interior de um texto feita por Arnaldo Saraiva.

A crítica superlativa
Na vertente da propriedade crítica, uma das permanências mais vulgarizadas é a do lirismo manifestado através de expressões valorativas e canonizadoras, também de emoções individuais, sobretudo quando a linguagem do elogio não está enquadrada nos seus constituintes jubilatórios por elementos esclarecedores que devidamente a prepararem. Seja como for, não deixa de se escrever sobre modos vários esse denominador comum que julgo poder ser considerado uma invariante conclusiva até porque a saudação mistificadora vem da palavra e da pena de críticos de diferentes procedências.  
José Régio fala do favorecimento dos deuses: João Gaspar Simões considera Marmelo e Silva «um caso raro» que «desde a sua primeira novela chega a uma perfeição inteira» e que é «um escritor genuinamente português» (o que é um escritor genuinamente português?); Ramo de Almeida refere-se ao «nome que já não se apagará da nossa história literária» (15); Mário Sacramento entende o escritor como «um dos casos mais notáveis da moderna literatura portuguesa», o «que mais fundo exprime e ensaia o significado da arte como libertação», e, a propósito da adolescência na obra do escritor, chega a lembrar que Cristo morreu com 33 anos. Serafim Ferreira diz do escritor que pertence «a esse escasso grupo de verdadeiros escritores» que «deve colocar-se sempre no primeiro plano da nossa moderna literatura» e «de quem é difícil escolher o que mais nos agrada»; Manuel Poppe refere o «prosador invulgar»; Baptista Bastos afirma que Sedução «faz parte do território colectivo (selectivo) onde se ordenam as grandes obras-primas da literatura» e reitera «obra-prima, repito». Casos diferentes da linguagem valorativa porque colocados em outros enquadramentos de perspectiva na inquirição dos textos, com desdobramentos à vista, são os de Arnaldo Saraiva que fala da «admirável modernidade» de Sedução, de Maria Alzira Seixo que, a propósito Adolescente Agrilhoado, diz ser «um romance que vale muito a pena ler» (17) e de Eduardo Prado Coelho que fala dos livros de marmelo e Silva como «uma obra que solicita de nós enorme atenção e rigor».
A superlativação tem outros modos de que agora não se cuidará. O do referido quadro de referências, por exemplo. O da reivindicação de uma propriedade de movimento, por exemplo, etc.  
Ou seja: um texto ou uma obra mobiliza a empatia (para usar a expressão de Mário Sacramento retomada por Lúcia Lepecki (18) e, portanto, a afectividade do leitor – e essa afectividade desborda do próprio texto para nela incluir a simpatia pelo próprio homem José Marmelo e Silva (e de novo Sacramento, entre outros). Este tipo de linguagem traduzível em termos de comparticipação quase sempre não explicitada materialmente através dos lugares plausíveis da “matriz” é, apesar de tudo, a tradução de um mesmo serviço à liturgia do imaginário para inverter a expressão «li uma ficção» em «uma ficção leu-me a mim». Desprevenidamente, o que se oferece ao leitor do texto crítico, não é a assimilação de uma “espiritualidade” do crítico ao modo como diz que ele próprio se encontra na obra criticada. O corredor de comunicação chamado crítica é o transporte do sujeito onde ele menos se vigia que é onde menos se racionaliza. Assim se mina Aristóteles e Descartes porque se disfunciona crítica e lógica; aí acabam os educadores do povo e os teólogos de qualquer ortodoxia, não pelo facto de que uma forma de afirmar o gosto não se possa investir como uma ortodoxia, mas, neste caso, porque a diferente procedência dos louvores de certo modo chega a uma unanimidade e as parcialidades de apreensão que resultam da incidência sobre ângulos psicológicos, sociológicos, temáticos míticos, de fontes, etc., esbatem as suas fronteiras e anunciam as suas falácias de abrangência. É, ainda, a célebre história de Descartes: descoberto o seu método, foi a correr agradecer a Nossa Senhora a aventura de tal descoberta. A musculatura matemática da razão torna-se comédia e acaba por, sem dizer, dizer afinal que «a arte é uma coisa que acontece na alma» ou noutro lugar qualquer que não se sabe dizer ainda. 
A crítica assim, mais comentário do que crítica, é também exterior à obra. Mas para quem ler os livros de Marmelo e Silva, esse terreno ocupado pela linguagem do afecto, ecoa com alguma gratificação. É, apesar de tudo e mesmo apesar dos apesares, a menos parcial das parcialidades com que o texto crítico pretende duplicar a obra – deixando-a sempre intacta. Porque a crítica assim nada tira nem acrescenta e nisso está a sua heróica hipocrisia. Heróica, sem saber, porque contra a herança racionalista lembra, mesmo que de viés, que o homem não é só inteligência. Hipócrita porque um abismo se mantém.

As virtudes da ambiguidade Se ficou apontada a constante superlativa que se vai lendo pelos textos críticos de Marmelo e Silva, detecta-se agora outra invariante: a da impossibilidade de recorte do conceito que não permite a objectivação rigorosa e que vai estabelecer a mescla ou a indefinição. Não se trata de um tópico de linguagem da dual oposição embora essa via, às vezes para apontar a convergência (como do caso do lugar na história), às vezes de radicalização oponente, também esteja bem anotada. Para só citar dois exemplos: Óscar Lopes, a propósito de Adolescente Agrilhoado diz que «o que se nos evidencia são dois domínios» e vai falar, depois, em tendência para a “popularidade” no tratamento de personagens; Serafim Ferreira refere «dois sentidos ou opções diferentes», em «duas formas de encadenar a mesma história» e assinala a sua insistência com um termo bem forte: «José Marmelo e Silva parece teimar com este livro na sua dupla (e idêntica) personalidade de escritor».
Que seja sob a forma de duplo, alternância, contraponto, ou outros modos semanticamente afins, estas formulações vão-se repetindo mas há quem escape a elas. Mas uma rede de sentido mesclado, grotesco ou outros nomes do neutro parece que ninguém escapa. Desta vez, José Saramago não foi o achador primeiro da designação quando em 1968 falava em virtudes da ambiguidade porque já antes Mário Sacramento dissera da “penumbra” que os textos de Marmelo e Silva o deixavam e sobre o «adolescente – em vez de dizer-lhe o nome, não está criando apenas uma ambiguidade», tempo de adolescência, do resto, a que Maria Lúcia Lepecki se refere também em termos de “ambígua temporalidade” além de dizer ainda que ao lermos Adolescente Agrilhoado, pelo interior do texto «não sabemos com rigor onde se deu a mudança de um para outro nível – do banal para o heróico». Maria Alzira Seixo também usa a designação do ambíguo, desta vez a propósito de Desnudez Uivante e da sua “envolvência ambígua”. Vocábulo que continua a manter-se: Desnudez Uivante «adia o signo em ambiguidade e sem sentido à espera de uma colocação». Mas outros registos se orientam para o mesmo, até dentro do positivismo mais positivo: Mário Sacramento fala em “algo”; Urbano Tavares Rodrigues em “ qualquer coisa de mítico”; Baptista Bastos em “algo de religioso” (e também em “pudor”); Manuel Poppe refere um Universo “baço”, “cinzento”, um amor que acontece “turbo”, «uma espécie de misoginia», um “fogo velado” que tem eco que ecoa Óscar Lopes em «as realizações físicas são veladas de pudor»; «oscilação» (Maria Alzira Seixo), «terreno oscilante», «nebulosas», «não-disjunção» (Maria da Glória Padrão) (19), são ainda outros signos navegáveis da abordagem. Mas é com certeza Eduardo Prado Coelho o que melhor traduz a perda da marcação dos sinais seguros e delimitadores da narrativa: «Sedução conta-nos (voluntária ou involuntariamente?) como seduzir retirar o chão debaixo dos pés de quem se julga seguro e deixá-lo seguro à beira desse incontornável abismo que é o feminino e a morte»; «e podemos ir mais longe: compreender que a força do texto reside no facto de tais ambiguidades e contradições se situarem, não no círculo de saber da omnisciência do autor, «mas na linha escarpada da escrita da sua narrativa». (Marmelo e Silva o último a saber?); «o texto aparece como um combate de resultado indeciso com a loucura desmedida do que se relata ou de quem relata».

Creio ser exactamente nessa linha de indecisão, de informulação, que se surpreende melhor o segredo da escrita do escritor. Nesse momento em que se encontra um neutro ou isso que é terreno sempre disponível à espera dos referentes nomeáveis. Isto é: uma escrita sempre à espera do objecto. É assim que também se toca a atmosfera do sagrado que também quase todos referiram. E permito-me uma autotranscrição porque dela ainda não discordo (sobre o último livro): «a trama, então, é vária-para-o-mesmo: o desejo apocalíptico da guerra nazi, a perversão por engendramento sádico ou outras experiências de limite e de transgressão, a dissolução pelo álcool, a significação pelo vómito, a relação sexual em tempo proibido de sangue menstrual, outras ultrapassagens em cadências de revolta contra Lei ou Ética em fios narrativos que às vezes se perdem ficcionalmente pelo poder ocioso da nudez. A variante mais sublinhada é, naturalmente, a do narrador: porque é o que conduz os ritmos textuais das nebulosas que quer objectivar, que quer constituir em signo e em sentido; porque é o sujeito da análise reflexiva do ser e do estar que acaba por fazer aparecer um poder sem lugar e sem corpo, que adia o signo em ambiguidade e sem-sentido à espera de uma colocação; porque é a personagem que mais exorbitantemente profana, dessacraliza, e que acentuadamente encontra o lugar do sublime que é um dos modos de resolver o abjecto: nem um, nem outro tem objecto». Por impossibilidade de atingir o objecto-livro ou literatura – vagueiam os críticos. Todos. Afinal tanto andar para se chegar à conclusão da «presença» - «o poder sexual da prosa» de que falara João Gaspar Simões.

 
A autocrítica ou ainda a disjuntiva inclusiva

«O melhor – não acham? – será ela ficar de enfermeira, se possível, naquele mesmo hospitalzinho em que foi tratada e a salvaram. (Achei-o muito acolhedor, naquela noite, quando lá corri a doar-lhe o sangue para a transfusão…)
(Versão do final de «Depoimento» na sua primeira versão.)

«O melhor – não acham – será eu talvez levar meus pais a oferecerem-lhe um qualquer serviço em nossa casa!»
(Versão final de «Depoimento» na sua 3ª edição.)

«O melhor – não acham – será eu talvez levar meus pais a oferecerem-lhe um qualquer serviço em nossa casa! Ou: ela ficar de enfermeira, se possível, naquele mesmo hospitalzinho em que foi tratada e a salvaram.
(Achei-o muito acolhedor, naquela noite, quando lá corri a dar-lhe sangue para a transfusão…)

(Versão final de «Depoimento».)

 

Conclusão

Conta-se que o oficial do Estado-Maior Korzybski tinha estudado cuidadosamente o seu mapa antes de uma ofensiva do segundo exército russo-polaco no decurso da Primeira Guerra Mundial. Tinha-o estudado cuidadosamente mas no terreno real havia um fosso e atrás dele metralhadoras alemãs emboscadas: tragicamente o mapa não era o território. Por isso, Alfred Korzybski aprendeu e disse «um mapa não é o território, um mapa não representa todo o território, um mapa desenvolve-se até ao infinito». Como oficial do exército não disse completamente bem: um território é que pode desenvolver-se até ao infinito.

Notas

 

(1)

(2)
(3)

(4)
(5)
(6)
(7)
(8)

(9)
(10)
(11)
(12)
(13)
(14)
(15)
(16)
(17)
(18)
(19)
Eduardo Prado Coelho, «A Confusão de Eduardo ou o último a saber» - notas para uma leitura de Sedução de José marmelo e Silva in A Letra Litoral, Lisboa, INCM, 1984
Óscar Lopes, «Marmelo e Silva, de novo», o comércio do Porto, 14 de Maio de 1968.
Alexandre Pinheiro torres e Alfredo Margarido, «As Grandes Correntes de Literatura Contemporânea», vol. II, Lisboa, ed. da associação de estudantes do Instituto Superior Técnico, 1964.
Alexandre Pinheiro Torres, «O Neo-Realismo Português, Lisboa,  Moraes Editores, 1977.
Mário Sacramento, «Livros & Autores», Diário de Lisboa, 9 de Novembro de 1967.
Álvaro Manuel Machado, «A Novelística Portuguesa Contemporânea», Lisboa, Instituto de Cultura Portuguesa, 1977.
João Gaspar Simões, «A Crítica Literária», Diário de Lisboa, 13 de Junho de 1968.
Arnaldo Saraiva, «Sedução de Marmelo e Silva: a sua importância e modernidade», in Sedução, 4ª ed., Lisboa, Ulisseia, 1972.
Serafim Ferreira, «Experiência Vivida», Vida Mundial, 29 de Março de 1968.
José Saramago, «As Virtudes da Ambiguidade», Seara Nova, nº 1472, Junho de 1968.
Mário de Sacramento, «A Insurreição dos Mitos», in Anquilose, Lisboa, Ulisseia, 1971.
Baptista Bastos, «O Sagrado e o Cósmico», O Diário, 23 de Maio de 1987.
João Falco [Irene Lisboa],  «Sedução», Revista de Portugal , nº3, Abril de 1938.
Maria Alzira Seixo, «Desnudez Uivante», Colóquio Letras, nº81, Setembro de 1984.
Ramos de Almeida, «Roda-pé de Crítica Literária – Sedução», jornal de Notícias, 26 de Maio de 1960.
Manuel Poppe, «Fogo velado», Diário Popular, 28 de Março de 1968.
«A Maria Alzira Seixo, «Figurações da Noite e do Dia – Adolescente Agrilhoado de José Marmelo e Silva», Lisboa, 1984.
Maria Lúcia Lepecki, « A linguagem dos Heróis», Diário de Notícias, 24 de Maio de 1987.
Maria da Glória Padrão, «Desnudez Uivante: Manifesto abjeccionista», Jornal de Letras, Artes e Ideias, nº108, Junho de 1984.
 
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