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NOTA  INTRODUTÓRIA
ARNALDO  SARAIVA

Sedução, novela ou romance de José Marmelo e Silva que durante décadas foi suposto o seu livro de estreia por muitos que ignoravam o juvenil e logo renegado O Homem que Abjurou a Sociedade (1932), teve  em 1937 uma recepção muito favorável, merecendo palavras calorosas de João Gaspar Simões,  Adolfo Casais Monteiro e Irene Lisboa, entre outros.

No entanto, não se pode dizer que a crítica estaria depois sempre atenta à produção de Marmelo e Silva. Compreende-se: ele não se fixou, nem andou muito por Lisboa, onde  aliás terminou a licenciatura iniciada em Coimbra: tropa em Aveiro e na Madeira, percurso de várias escolas do país, fixação definitiva em Espinho (em 1947).

O lançamento em 2002 da sua Obra Completa, sob a direcção de Maria de Fátima Marinho, e a constituição de um Centro de Estudos com o seu nome, já associado à edição de Leituras de José Marmelo e Silva (2006), organizado por Ernesto Rodrigues, vieram dar testemunho da “permanência” de um escritor falecido em 1991 e vieram favorecer o reconhecimento público de um autor de obra escassa, mas singular e relevante, que justifica novos ensaios e críticas.

Solicitado pelo mesmo Centro de Estudos para organizar um novo volume, achei por bem solicitar a colaboração de credenciados professores universitários e de uma mestranda de literatura. E achei mais vantajoso e útil um volume  de estudos unitários ou “orientados” do que um volume de estudos dispersos ou aleatórios. Assim, optei por propor a cada um dos seis colaboradores a análise do personagem de uma das seis obras de José Marmelo e Silva (excluindo a sua obra de estreia, que ele renegou, e a  obra  que deixou inédita, ou inconclusa, O Cabo Elísio).

Pareceu-me que, dado o lugar central que a personagem ocupa em qualquer ficção, tais estudos poderiam iluminar centralmente a produção de Marmelo e Silva, mas também poderiam ter o valor acrescentado de contribuírem para atenuar a escassez,  assinalada por Maria de Lourdes Ferraz no Dicionário de Personagens da Novela Camiliana, desse tipo de estudos teóricos ou práticos em Portugal, tão contrastante com a abundância que conhece noutros países, nomeadamente na França. Não por acaso, uma das colaboradoras  convidadas é autora do mais alentado estudo que já se escreveu em Portugal sobre a personagem: A Construção da Personagem Romanesca: Processos Definidores.

Quando apareceu Sedução, cerca de duas décadas antes do aparecimento do “nouveau roman”, ainda ninguém falava na “morte da personagem”, ideia que, tal como a da “morte da literatura”, só podia nascer de um equívoco ou de um propósito publicitário e demagógico, nunca justificado por rejeições de algumas modalidades tradicionais, ou pela exploração de novas modalidades. Antropomorfizado ou não, actante ou actor, principal ou secundário, típico ou atípico, o  personagem continuou a ser o signo de vida ou acção que define e justifica a narrativa, susceptível de interessar o leitor que se descobre nesse signo como num espelho, ou que se abre ao que esse signo espelha nele.

Em Marmelo e Silva também se pode tornar bem perceptível a recusa do “herói” e a opção pelo “anti-herói” (como o falhado  adolescente agrilhoado Luís Miguel), a fuga ao retrato completo e substancial ou à caracterização realista, o gosto pela disseminação de elementos comportamentais, psicológicos, espaciais, etc., e a preferência pela visão não omnisciente “em processo” ou “em progresso”.
Os seis  ensaios aqui reunidos permitem caracterizar bem a galeria de personagens das narrativas breves  de Marmelo e Silva: personagens preferentemente jovens e preferentemente masculinos, geralmente em  relação difícil ou traumatizante com personagens femininos “típicos”(a ingénua, a dissimulada, a puta);frustradamente fixados em espaços limitados e limitantes, de que alguns fogem ou tentam fugir, como o da família, o do campo, o do internato ou o da caserna (e da Beira, da Madeira, de Coimbra, de Lisboa, de Aveiro, do Porto...); confrontados com valores, hipocrisias e preconceitos patriarcais, autoritários, religiosos  ou sexuais, contra os quais podem inglória ou dramaticamente rebelar-se.

Focados como regra por um narrador em primeira pessoa, que não raro parece próximo do registo autobiográfico, que é mais seduzido pelos mundos interiores do que pelos acontecimentos histórico-sociais, que gosta de narrar como quem conta com desenvoltura, e que, fugindo ao descritivo  e ao directo (neo-)realista, sabe tirar partido da elipse, da sugestão e da velocidade típica da narrativa curta, afirmando-se  individualmente, em associação dupla (José Luís Jordão / Augusto Lara em Desnudez Uivante),  em associação  familiar (os Baiões de O Ser e o Ter), e em associação colectiva (os seminaristas, os militares, o povo, a burguesia de várias obras), os personagens de José Marmelo e Silva, marcados quase sempre por obsessões e frustrações sexuais e por anquilosamentos sociais, podem valer como exemplos e, mesmo quando não são rebeldes, como testemunhas de acusação de um tempo português salazarento, ou dos poderes  da tradição religiosa, política e militar portuguesa que contrariam a alegria de viver.

 
 
 
 
 
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